“No momento em que o mundo constata o fracasso da operação dos Estados Unidos no Afeganistão que, a pretexto de combater o terrorismo e o eixo do mal, produziu 20 anos de miséria, morte e destruição, no Brasil a Câmara dos Deputados discute se é hora de armar o país com uma lei ‘antiterrorismo’”, apontam os advogados Patrick Mariano e Carol Proner
No momento em que o mundo constata o fracasso da operação dos Estados Unidos no Afeganistão que, a pretexto de combater o terrorismo e o eixo do mal, produziu 20 anos de miséria, morte e destruição, no Brasil a Câmara dos Deputados discute se é hora de armar o país com uma lei “antiterrorismo” e ajudar o mundo a se tornar um lugar mais seguro.
Ao que parece, deputadas e deputados brasileiros defensores da legislação exógena fecham os olhos para os resultados da aplicação instrumental desse tipo de norma que já é bastante conhecido por seus efeitos perversos. O uso do direito internacional com fins imperialistas e expansionistas ao custo de vidas e da destruição da soberania, burlando o compromisso fundacional da ONU, foi o efeito mais proveitoso do 11 de setembro para os Estados Unidos e ainda o é, só que com ajustes de modelo.
Com cifras ainda imprecisas, o número de mortos entre civis e membros das forças de segurança afegãs somam mais de 174 mil pessoas, isso sem contar os que padeceram pela escassez de água e de alimentos. Do lado estadunidense, 2400 mortos e 1 trilhão em, digamos, investimento de guerra. Mesmo com tamanha desproporção, as imagens da derrota dos americanos no país centro-asiático são inegáveis e fazem recordar outra debacle memorável, a derrota no Vietnã, que deixou como saldo, além das minas terrestres e carcaças de brinquedos militares, aproximadamente 370 mil mortos do lado dos cambojanos e laocianos, aproximadamente 58 mil mortos entre americanos, isso sem contar os feridos e desaparecidos. Esses são apenas dois exemplos da indisfarçável decadência do império da guerra forjado sob o lema do “combate ao terror”.
Com o tempo, o tipo de guerra tradicional, do tipo sangrento, vem sendo aprimorando do lado agressor: mais tecnologia não tripulada, menos material humano, mais leis ajustadas, menos efetivos em campo de batalha, mais advogados, menos militares, mais bloqueios de contas bancárias e operações financeiras, menos efeitos colaterais que possam comprometer a imagem dos invasores junto à opinião pública. A guerra mudou, mas continua sendo guerra e passa pela necessidade de ajustar as legislações nacionais dos adversários para permitir a invasão por outros meios: a arma da extraterritorialidade.
No dia 16 de setembro a Comissão Especial da Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei que trata de “Contraterrorismo” e que traz apreensão junto aos movimentos sociais. A pauta prossegue com grande velocidade nos trâmites de aprovação e é surpreendente que não tenhamos oposição organizada para revelar a obvia armadilha que está sendo instalada em nossa legislação.
Em linhas gerais, o Projeto PL 1595/19, de autoria do Major Vitor Hugo, é defendido a partir de três argumentos: proteger vidas humanas, garantir a capacidade do Estado brasileiro de tomar decisões e preservar o patrimônio público e privado diante de ações terroristas. A justificativa não convence, já que o Brasil é um país pacífico há séculos, motivo de orgulho para a diplomacia. O propósito do projeto seria o de complementar os atos já tipificados como terrorismo pela Lei nº 13.260, Lei do Enfrentamento ao Terrorismo, mas, segundo o autor, para tipificar atos que, embora não sejam entendidos como tal, podem causar danos ao Estado e ao patrimônio.
A proposta é um insulto à inteligência estratégica e um risco ao país. O Brasil nunca teve ou mesmo possuiu grupos terroristas, nem mesmo vive ou viveu recentemente qualquer ameaça externa. Trata-se, transparente como água, de uma imposição ideológico-simbólica americana que fez prevalecer “guerras preventivas contra o terror” e que se desdobram, mais recentemente, em bloqueios e embargos preventivos, em multas preventivas, combate à corrupção preventivo e tudo o que a criatividade jurídico-militar for capaz de incluir como estratégia de ingerências de novo tipo.
Importante lembrar que até hoje, o único processo de investigação sobre terrorismo que partiu da Lei 13.260, aprovada durante o governo Dilma Rousseff, foi uma estranha e espetaculosa ação conduzida pelo Ministro da Justiça Alexandre de Moraes durante as Olimpíadas e que terminou com um dos acusados se suicidando na prisão. Aliás, diga-se de passagem, quando a controversa legislação foi aprovada, abrimos um flanco de vulnerabilidade que serve, como um ferimento mal curado, de entrada de novas.
Mesmo com um contexto nacional e internacional que em nada justificam a adoção desse tipo de legislação, o debate na Câmara se dá às pressas, sem a adequada participação pública, o que naturalmente compromete a legitimidade. Esse debate é fundamental, pois para além do “flaflu” entre governo e oposição, está em questão uma visão de Estado e um consequente olhar para o futuro enquanto nação democrática que tem como suas finalidades preservar direitos e a dignidade da pessoa humana como eixo de toda sua ação.
Este tema, é antes de tudo, de Defesa do Estado e da soberania. Em território nacional não se dá o tipo terrorismo conforme preventivamente descrito na proposta. O próprio autor do projeto apresenta como subsídios o episódio do sequestro do ônibus 174 na Ponte Rio-Niterói, ou eventuais ameaças de ataques durante a Copa do Mundo em 2002, menciona potenciais ameaças a escolas, mas nas estatísticas oficiais não há dados que sustentem esse argumento. E é bastante evidente que todos os exemplos mencionados estão abarcados pelo amplo leque da legislação penal brasileira.
Caso a proposta avance e se torne lei, além de abrir uma irrefreável brecha na soberania brasileira para ações de ingerência de novo tipo, abre espaço para o arbítrio de procedimentos sem o controle das instituições do Estado que, por sua vez, deveriam estar sob controle constitucional e das garantias fundamentais.
O projeto traz ainda inequívoca invasão e subtração da competência das forças de segurança públicas estaduais e dos governadores, bem como esvaia a função dos ministérios públicos no controle externo da atividade policial.
A delimitação da conduta terrorista, que histórica, sociológica e politicamente já é vaga e lacunosa, portanto, sujeita ao arbítrio, é construída e complementada a partir de uma abstração excessiva em relação à legislação vigente, apresentando clara ofensa ao princípio da legalidade.
Cabe aos movimentos sociais, partidos e instituições públicas estarem atentos ao andamento legislativo deste perigoso projeto de lei que representa um óbice importante para a autonomia e a soberania do país frente ao assédio da extraterritorialidade que opera fortemente na América Latina em um contexto no qual o direito é arma de uma guerra não tradicional.
Alguém precisa avisar aos nossos congressistas entusiasmados que a “guerra ao terror” foi um rotundo fracasso geopolítico e que aliar-se a esse modelo obsoleto é uma armadilha. O mundo hoje é completamente diferente daquele de George Bush Jr, mas pelo jeito e lamentavelmente, como nas pitorescas histórias da Segunda Guerra, há soldados perdidos em ilhas distantes que continuam sem acreditar que a guerra acabou.
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