A decisão do Comitê de DDHH da ONU, comunicada ao governo brasileiro na semana passada, chancela não apenas as teses da defesa do ex-Presidente Lula – de que ele sofreu perseguição política travestida de processo jurídico – como também põe em cheque a legalidade das eleições de 2018 e tudo o que veio depois.
Ao menos do ponto de vista da memória histórica, a decisão da ONU traz a possibilidade de imaginar que, se não fosse a Lava Jato e a conexão com a mídia, viabilizada pela complacência de instituições e de setores do poder judiciário em diferentes instâncias, não haveria Jair Bolsonaro. Todos os cenários daquele ano apontavam para a vitória de Lula e a continuidade do projeto de sociedade por ele iniciado em 2003, apenas interrompido pelo golpe de novo tipo sofrido por Dilma Rousseff em 2016.
Ressalvo que não significa defender a plenitude do mandato, se acertado ou não, mas a fórmula da abreviação do mandato atentou contra a Constituição de 1988 e contra a lei específica que autoriza a realização do juízo político quando presentes as condicionantes jurídicas, colocando a perder a estabilidade das regras do jogo democrático.
Sabemos que qualquer reparação do Estado ao ex-Presidente Lula por força da decisão internacional nunca poderá restituir os direitos que lhe foram usurpados em 580 dias de cárcere, sem falar nos especiais momentos de dor que viveu e na tentativa de apagar, em vida, sua biografia e seu legado político.
Também à sociedade brasileira não serão restituídos os direitos coletivos de participação política que lhe foram negados. Não há o que possa compensar os golpes dentro de golpes facilitados pela aliança de setores oportunistas, que organizaram as reformas e armadilhas legislativas para operar a sonegação de direitos e da soberania.
Se há uma mensagem da ONU para as instituições do Estado é a de que brincar com o descumprimento de regras essenciais do Estado é perigoso: uma vez que se instaura o caos, não há como parar, ficamos reféns do precedente.
Se as instituições foram negligentes em 2018, agora já não cabe alegar qualquer descuido para que a democracia ganhe passo. Isso vale no repúdio contundente e explícito a qualquer um que atente contra a normalidade das instituições, de parlamentares a militares boquirrotos, e a qualquer esforço de naturalizar golpes e desestabilização.
Isso vale para qualquer espaço, do grupo da família às entidades profissionais, como a minha, a jurídica, que por vezes cai na tentação de defender a neutralidade quando se apresentam projetos mutuamente excludentes de sociedade.
Não são tempos para a covardia e menos ainda para temer golpes de militares em pijamas. É chegada a hora de defender inclusive as Forças Armadas, em franco processo de desmoralização pela incompetência manifesta em todas as áreas que deveriam ser de atribuição civil.
O que nos resta, como processo restaurativo visando o futuro, são as eleições deste ano e a lição que duramente aprendemos como sociedade que definha, que padece em todas as frentes e que encontrará no processo eleitoral a única saída para recolocar a bola no meio do campo e recomeçar a jogar a partida da democracia.
Artigo publicado originalmente no Último Segundo.
Foto: Jean-Marc Ferré/ONU